Perdas e danos de
um projeto de poder
Extra
21/02/16
21/02/16
De segunda a sexta, é tudo sempre
igual. Sai de casa cedo, no Jardim América, Zona Norte, viaja uma hora até o
Centro do Rio e passa o dia à espera de um serviço de despachante no entorno da
sede da Petrobras, onde trabalhou um terço da vida. Deixou a estatal, em 1993,
levando um plano de previdência anunciado na empresa como a garantia de um
“futuro mais tranquilo”.
Aos 71 anos, Livaldo Pereira de
Souza é um aposentado preocupado com o seu futuro e o de outras 150 mil pessoas
que, como ele, apostaram no fundo de previdência da Petrobras:
— Não é possível que a Petros possa
estar em situação difícil — hesita. — Quando mais vou precisar, ela não poderá
pagar minha pensão? Como um fundo como a Petros, que tinha um dos maiores
patrimônios depois da Previ (Banco do Brasil), pode estar em situação difícil?
Isso só pode ser má gestão dos dirigentes, que sempre foram nomeados por
indicação do governo federal.
Aflição similar há um ano consome o
cotidiano em Brasília de Maria do Socorro Ramalho, de 56 anos. Ex-funcionária
da Caixa Econômica Federal, ela começou a ouvir rumores sobre uma crise no
fundo de previdência Funcef. O boato virou realidade numa segunda-feira, 13 de
abril, quando ouviu o presidente da Funcef Carlos Alberto Caser confirmar o
déficit:
— Foi chocante, porque eles viviam
falando que estava tudo bem.
Maika, como prefere ser chamada,
soube de uma mobilização dos sócios do fundo dos Correios. Aposentados da
Funcef e do Postalis foram ao Congresso pedir ajuda para obter informações
sobre a situação das contas. Ela descobriu que a situação no Postalis é bem
pior que na Funcef.
Em quatro meses de ativismo, ela
percebeu também como é a elevada sensibilidade do Legislativo às pressões do
funcionalismo: a Câmara abriu uma CPI dos Fundos de Pensão e o Senado já tem
outra na fila.
Sobram motivos. Um deles é o tamanho
do déficit na Petros (da Petrobras), Funcef (Caixa) e Postalis (Correios): R$
29,6 bilhões, pela última medição governamental, em agosto do ano passado.
Outra razão é a velocidade em que o
rombo aumenta: média de R$ 3,7 bilhões ao mês, até agosto. Nesse ritmo, os
balanços de 2015 de Petros, Funcef e Postalis, cuja divulgação está prevista
para abril, devem fechar com perdas de R$ 44,4 bilhões — um valor sete vezes
maior que as perdas reconhecidas pela Petrobras com corrupção.
O pagamento dessa fatura será
dividido ao meio entre associados de Petros, Funcef e Postalis e as estatais
patrocinadoras — ou seja, pela sociedade, porque as empresas são controladas
pelo Tesouro Nacional. No Ministério da Previdência e na CPI, considera-se provável
que os 500 mil sócios dos três fundos atravessem as próximas duas décadas com
reduções nos rendimentos. De até 26% no caso do Postalis.
— Roubaram meu dinheiro — desabafa
Jackson Mendes, aposentado com 42 anos de trabalho nos Correios.
Professor de Matemática, Mendes
integra o grupo que levou a Câmara a instalar a CPI. Ele se diz convicto:
— Fizeram investimentos mal
explicados e o dinheiro virou pó.
A maioria dos responsáveis pelos
déficits das fundações públicas tem em comum a origem no ativismo sindical. Nos
últimos 12 anos, os principais gestores dos fundos de Petrobras, Banco do
Brasil, Caixa e Correios saíram das fileiras do Sindicato dos Bancários de São
Paulo.
É uma característica dos governos
Lula e Dilma, e as razões têm mais a ver com perspectivas de poder e negócios
do que com ideologias.
Os sindicalistas-gestores agem como
força-tarefa alinhada ao governo. Compõem uma casta emergente na burocracia do
PT. Agregam interesses pela capacidade de influir no acesso de grandes empresas
ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), fonte principal de recursos
subsidiados do BNDES. Onde não têm hegemonia, por efeito do loteamento
administrativo, convivem em tensão permanente com indicados pelo PMDB e outros
partidos, caso do Postalis.
O uso dos fundos de pensão estatais
como instrumento de governo é um traço peculiar do modo de organização política
brasileira. Moldadas no regime militar, as 89 fundações públicas existentes
dispõem de uma reserva de investimentos (R$ 450 bilhões no ano passado) que seduz
governantes: permite-lhes vislumbrar a possibilidade de induzir iniciativas
econômicas, por meio da participação dos fundos na estrutura de propriedade das
empresas envolvidas. Petros, Previ, Funcef e Postalis, por exemplo, concentram
dois terços do patrimônio dos fundos públicos.
Essas entidades paraestatais
cresceram nas privatizações iniciadas por Fernando Collor e Itamar Franco. Com
Fernando Henrique Cardoso, passaram ao centro das mudanças na mineração (Vale)
e nas comunicações (Telefônicas).
Quando chegou ao Planalto, em 2003,
Lula estava decidido a ampliar esse canal de influência sobre o setor privado,
pela via da multiplicação da presença dos fundos de pensão estatais e do BNDES
no quadro societário das empresas.
Havia um projeto, desenhado desde os
primórdios do PT e da Central Única dos Trabalhadores, por iniciativa de Luiz
Gushiken, então presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo.
Tipo incomum, ascendera à liderança
sindical convocando greves a bordo de terno e gravata. Trocou a militância no
comunismo trotskista pela composição com Lula, líder dos metalúrgicos, a partir
de uma conversa de botequim. Ajudou a escrever o primeiro estatuto, presidiu o
PT, elegeu-se deputado federal três vezes e se tornou um dos mais influentes assessores
de Lula.
Foram os negócios nada ortodoxos
entre fundos estatais e empresas privadas durante o governo Collor, em 1991,
que levaram Gushiken e dois diretores do sindicato paulistano, Ricardo Berzoini
e Sérgio Rosa, a abrir o debate dentro do PT sobre o potencial político dos
fundos de pensão — até então percebidos como meros instrumentos governamentais
de cooptação de sindicalistas.
No ano seguinte, a cúpula
político-sindical do PT elegeu bancários para diretorias da Previ e da Funcef,
derrotando a velha guarda da Confederação dos Trabalhadores nas Empresas de
Crédito.
O grupo avançou com a eleição de
Berzoini à presidência do sindicato paulistano, com Sérgio Rosa e João Vaccari
Neto na diretoria. Meses depois, esse trio teve a ideia de entrar no ramo
imobiliário com apoio financeiro dos fundos de previdência: nascia a Bancoop,
cooperativa habitacional, hoje alvo de múltiplos processos por suposto desvio
de dinheiro para campanhas do PT e calote em mais de dois mil clientes.
Gushiken decidiu não disputar o
quarto mandato de deputado federal pelo PT, em 1998. Berzoini ficou com a vaga.
Elegeu-se, mas fez questão de continuar na direção da Bancoop até a campanha
presidencial de Lula, em 2002.
Na sede da CUT, Gushiken instalou um
curso para formação de sindicalistas em Previdência Complementar. Sinalizava o
rumo nas apostilas: “No Brasil, o fundo de pensão como fonte de poder ou como
potente agente de negociação nunca foi objeto de discussão nos sindicatos (...)
Existe a possibilidade, não remota, de que este monumental volume de recursos,
oriundos do sacrifício de milhões de trabalhadores, venha a se transformar num
gigantesco pesadelo para estes mesmos trabalhadores”.
O grupo testou o potencial de um
fundo estatal na campanha presidencial de 2002. Sérgio Rosa estava na diretoria
de Participações da Previ, onde decidem-se os investimentos. Numa quinta-feira,
9 de maio, ele despachou cartas a uma centena de conselheiros do fundo em
empresas privadas. Pediu informações sobre como a disputa política “está sendo
abordada na empresa em que nos representa” e “qual o posicionamento” das
companhias privadas quanto à “participação efetiva no processo”.
Naquele ano eleitoral, as aplicações
da Previ no mercado de ações foram quadruplicadas. Adversários sindicais, como
Magno de Mello e Valmir Camilo, relacionaram as aplicações da Previ com doações
de empresas privadas para Lula e 254 candidatos do PT em todo o país.
Eleito, Lula deu à burocracia
sindical 11 dos 33 ministérios e partilhou diretorias na Petrobras, Banco do
Brasil, Caixa e Correios com PMDB e PTB, entre outros integrantes da “maior
base parlamentar do Ocidente”, como definia o ministro da Casa Civil, José
Dirceu.
Gushiken ficou com a Secretaria de
Comunicação; Berzoini foi para o Ministério da Previdência; e Vaccari assumiu o
sindicato em São Paulo. Eles definiram com Lula o comando dos maiores fundos de
pensão estatais a partir do núcleo do sindicalismo bancário. Assim, Sérgio Rosa
ganhou a presidência da Previ, Wagner Pinheiro ficou com a Petros e Guilherme
Lacerda foi para a Funcef. Ao PMDB reservaram o menor, Postalis.
Na Previdência, Berzoini fechou o
circuito com a nomeação de um ex-conselheiro fiscal da Bancoop, Carlos Gabas,
para a secretaria-executiva do ministério, que controla o órgão de fiscalização
dos fundos de pensão, a Previc. Passaram os anos seguintes testando na prática
o projeto que haviam imaginado na década de 80. Os bons companheiros estavam no
poder.
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