A Lei da Entrega e a intervenção estatal na economia
ESTADÃO
20/2/18
20/2/18
O Estado de São Paulo promulgou a Lei Estadual nº 13.747/2009, que impõe aos fornecedores dar a opção aos consumidores de escolherem data e período para receberem os produtos ou serviços adquiridos. A justificativa dessa norma seria evitar que o consumidor venha a esperar por tempo indeterminado em sua residência ou outro lugar que deseja receber a entrega do produto ou a prestação do serviço adquirido, não lhe prejudicando, por conseguinte, nos seus afazeres diários.
Infelizmente a lei não fez qualquer distinção, aplicando genericamente a obrigação de entrega agendada a todo e qualquer produto ou serviço. Contudo, não são todos os produtos que impõem a entrega diretamente ao consumidor, exigindo-se que este ou seus familiares fiquem à disposição do fornecedor durante todo o dia.
Plenamente aplicável a justificativa legal quando se tratar da prestação de um serviço, podendo-se citar a instalação de internet, de TV a cabo, conserto de eletrodomésticos, dentre outros, ou quando se tratar de produto que foi adquirido e a entrega pessoal é essencial, como por exemplo eletrodomésticos ou móveis (fogão, ar-condicionado, camas, estantes). Por outro lado, produtos de dimensões singelas, como pequenas peças de roupas e livros poderiam continuar a ser entregues pelos Correios, já que seus pequenos pacotes podem ser recebidos nas portarias de prédios ou depositados em caixas de correios, sem qualquer ônus adicional ao mercado, incluídos os fornecedores e também os próprios consumidores.
Obviamente essa imposição legal forçou os fornecedores a investirem em seus departamentos de logística para adequação às obrigações correlatas, repassando o custo do frete para o consumidor que efetivamente optasse pela entrega agendada. No entanto, a Lei da Entrega foi posteriormente alterada pela Lei nº 14.951/2013, cuja modificação mais significativa proíbe justamente a cobrança de valor maior pela entrega agendada.
A partir de então, os custos dos investimentos nos departamentos de logística e de contratações de empresas de transporte especializado, como não puderam mais ser repassados aos consumidores que optassem pela entrega agendada, respeitadas as leis de mercado, acabaram por ser incorporados no processo produtivo ou operacional, impondo um aumento nos preços dos produtos e serviços, prejudicando os consumidores indistintamente, inclusive os que não necessitam ou não tem interesse na entrega agendada.
Conceito muitas vezes ignorado pela maioria dos governantes, políticos e servidores públicos, é que a empresa não produz faturamento ou lucro sem o auxílio humano. Necessário que os empresários, empregados e os consumidores administrem, trabalhem e consumam para que a empresa obtenha faturamento. E todo esse custo é incorporado no preço dos produtos e serviços, ou seja, quem paga a conta é o consumidor final.
Nesse passo, independente da intenção legislativa com a promulgação da Lei da Entrega e posterior vedação de cobrança de valor adicional pela entrega agendada, é inegável que o aumento dos custos dessa adequação do mercado acabaram direta ou indiretamente por atingir o consumidor final, que hoje paga mais caro pelo seu produto, serviço ou pelo frete da entrega, agendada ou não. Esse é um dos componentes da inflação, qual seja, a intervenção estatal na economia.
Mas não é só, diante das evidentes dificuldades em adaptar um mercado de logística, especialmente o da cidade de São Paulo, cujos problemas de trânsito, restrições de circulação, alagamentos, dentre outros, que são evidentes, os fornecedores de produtos e serviços, bem como as próprias empresas de logística, levaram um bom tempo para conseguirem se adequar à Lei da Entrega. E o Procon não perdeu tempo em sua ânsia arrecadatória, lavrando mais de 500 autuações em multas estimadas em 50 milhões de reais com base nessa lei específica, impondo assim mais ônus e custos aos fornecedores, que, como vimos, na ponta do mercado acaba por atingir e prejudicar o próprio consumidor final com o aumento dos preços dos produtos, serviços e fretes.
E posteriormente outro órgão público resolveu também utilizar o pano de fundo da Lei da Entrega para intervir desnecessariamente na economia. Isso porque o Ministério Público de São Paulo instaurou inicialmente o Inquérito Civil 14.161.1865/13 – 2º PJ e posteriormente ingressou com a Ação Civil Pública, sob o pretexto de que os fornecedores estariam descumprindo a Lei da Entrega.
No entendimento do Ministério Público, não obstante os fornecedores já estarem adequados à lei, com a possibilidade do consumidor optar pela entrega agendada sem ônus adicional, os prazos de entrega agendada estariam muito alongados se comparados com os prazos de entrega não agendada. Isso justificaria, na obtusa visão do Ministério Público, a possibilidade de imposição de prazo certo para a entrega agendada, ou seja, a modalidade de entrega agendada não poderia ser superior a 13 dias úteis adicionais ao prazo da entrega não agendada, ou no máximo 30 dias úteis contados da confirmação da compra.
Entretanto, o ponto crucial dessa pretensão do Ministério Público de regulamentação forçada do mercado e intervenção estatal na economia é que essas obrigações e esses prazos não estão previstas em lei, sendo totalmente arbitrários e subjetivos, uma vez que não cabe ao Ministério Público impor prazo para cumprimento de uma exigência legal, quando a própria lei assim não o fez. Caso contrário, estar-se-ia conferindo poder verdadeiramente legislativo a quem não compete legislar, em afronta ao princípio da separação dos poderes previsto na Constituição Federal.
Para ilustrar esse ponto, pergunta-se, por que o Ministério Público estabeleceu 13 dias úteis como prazo máximo para a entrega agendada, contados da data da entrega não agendada, e não 14 ou 10? Será que o prazo de 13 dias úteis para entrega agendada está em conformidade com as normas principiológicas do Código de Defesa do Consumidor e 14 dias úteis trariam graves e irreparáveis prejuízos ao consumidor? Evidentemente que não!
E pior, ao tentar impor prazos idênticos a todos os fornecedores indistintamente, o Ministério Público desconsidera as peculiaridades de cada empresa, de cada setor da economia, ramo de atividade, tipo de produto ou serviço, variáveis estas que necessariamente refletem no sistema logístico, sendo a tentativa de homogeneização do mercado uma aberração não embasada em qualquer critério técnico.
Muitos fornecedores acabaram por acatar a reprovável imposição ilegal do Ministério Público, receosos dos pedidos indenizatórios de dano moral coletivo, multas diárias e novas autuações por parte do Procon, repassando os custos de mais essa adequação aos seus produtos e serviços, e prejudicando mais uma vez o consumidor final que acaba por pagar a conta, sendo este o grande problema de não se respeitar a liberdade econômica e a livre iniciativa.
A fundação Heritage produziu um ranking de liberdade econômica com 180 países e, pasmem, o Brasil hoje se encontra no vexatório 140º lugar, ao lado de países como Togo, Paquistão e Etiópia, cujas condições econômicas e sociais precárias são notórias e inegáveis. Isso demonstra que o Brasil infelizmente tomou o rumo errado da desnecessária intervenção do Estado na economia, que após algumas variáveis e alguns anos resultou na maior recessão econômica de nossa história, com níveis de desemprego altíssimos e a população sem acesso a serviços básicos como saúde, educação e segurança.
E isso se justifica pois países com governos inchados, com maior intervenção estatal na economia, inevitavelmente se encontram em condições econômicas precárias, que infelizmente refletem em uma população que amarga péssimas condições básicas de saúde, educação e renda per capta. A Venezuela hoje é o exemplo perfeito dessa máxima, que também poderia passar por Cuba e Coreia do Norte, com o povo fadado à miséria e com direitos humanos básicos violados.
A história e a inegável realidade global não deixam dúvidas a esse respeito, já que na outra ponta, países como Cingapura, Austrália, Nova Zelândia e Suíça, cuja intervenção estatal na economia é apenas residual, atingem os melhores níveis de qualidade de vida, renda per capta e IDH (índice de desenvolvimento humano).
Importante destacar o conceito de livre concorrência, que para Fábio Ulhoa Coelho é o que “garante o fornecimento ao mercado, de produtos ou serviços com qualidade crescente e preços decrescentes”.
Não se pode pegar que a livre concorrência só tem lugar em mercados equilibrados, livres de poder econômico ou de um monopólio. Nestes casos a intervenção do Estado pode eventualmente se justificar na tentativa de buscar o equilíbrio e proteger o consumidor final, já que logicamente uma empresa que detém o monopólio de um setor da economia não precisa direcionar seus atos e decisões empresariais para ofertar melhores condições que seus concorrentes.
Contudo, no mercado varejista de venda de produtos e serviços pela internet, que foi atingido pela Lei da Entrega, sem nenhuma dúvida existe livre concorrência plena, com grandes, pequenos e até varejistas individuais ofertando seus produtos e serviços ao consumidor final, que tem à sua disposição incontáveis possibilidades de encontrar, por simples busca na internet, os melhores preços e condições para sua compra.
Nesse mercado, e isso é mais do que óbvio, a intervenção do Estado não se justifica e não é recomendável, já que os concorrentes são obrigados por direcionar sua livre iniciativa a oferecer melhores condições do que seus concorrentes, sob pena de perderem espaço no mercado, vendas, impactando negativamente em seus faturamentos.
Ou seja, o consumidor final que pretenda adquirir um produto ou serviço pela internet e que necessite da entrega agendada em dia e período certos para recebê-lo em sua residência, tem à sua disposição ampla gama de possibilidades, dos mais diversos fornecedores, podendo optar livremente por aquele que aliar bom preço às melhores condições de entrega.
Nesse ínterim, o fornecedor que, na linha do entendimento do Ministério Público, estiver oferecendo a possibilidade de entrega agendada apenas em uma data muito distante da data da compra, será preterido por outro fornecedor que disponibilizar essa entrega agendada em data mais próxima. E assim o fornecedor preterido será obrigado a melhorar suas condições de entrega agendada, guiado pela livre concorrência, mas nunca pela reprovável intervenção estatal em um mercado que definitivamente não impõe essa necessidade.
Atualmente, devido à baixa demanda decorrente da forte recessão econômica que assola o país, os fornecedores e as empresas de transporte especializado conseguem cumprir a previsão de entrega dos produtos adquiridos pelos consumidores coincidentemente dentro do prazo exigido pelo Ministério Público. Todavia, tal prazo sofre variações de acordo com a demanda, sazonalidade, localidade do destino, trânsito da região, restrições de circulação e diversos outros fatores que podem ocasionalmente alongar o prazo da entrega agendada.
Obviamente, o prazo da entrega agendada será sempre mais elástico que o prazo sem agendamento justamente porque naquele devem ser alinhados a logística da empresa contratada pelo fornecedor com o melhor dia e turno escolhidos pelo consumidor, inexistindo intenção dos fornecedores em desestimular a opção pela entrega agendada, ainda mais em um mercado altamente competitivo, em que a livre concorrência impõe uma melhora contínua de preços, condições de pagamento e de entrega.
A descabida intervenção estatal na economia dá margem ao alardeado “custo Brasil”, quando as empresas e o empreendedor são obrigados a arcar com custos não previstos em lei, dando azo a insegurança jurídica, que em última análise propicia inflação, desemprego e a recessão econômica que invariavelmente o país enfrenta ao longo de sua história, agravada nos últimos anos.
Mas ainda há uma luz no fim do túnel. No último dia 18 de janeiro de 2018, a juíza Vanessa Ribeiro Mateus, da 8ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo, julgou improcedente uma Ação Civil Pública do Ministério Público de São Paulo, entendendo não haver abusividade nos prazos da entrega agendada disponibilizada aos consumidores, bem como a inexistência de previsão legal para a tentativa de imposição de prazos certos para a entrega agendada.
Louvável o posicionamento da Magistrada, que obstou uma nova e desnecessária intervenção estatal na economia, respeitando a livre iniciativa e a autorregulamentação do mercado, protegendo empregos e o próprio consumidor final, que não terá que arcar mais uma vez com o aumento dos custos dos produtos que certamente a nova adaptação às ilegais obrigações pretendidas pelo Ministério Público imporia ao mercado. Entretanto, ainda cabe recurso. A luta por uma economia livre, apenas com uma intervenção estatal residual, sem a imposição de ônus ao mercado e prejuízos aos fornecedores e consumidores continua.
*Marcelo Domingues Pereira é advogado e sócio do escritório Falletti Advogados
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