Um ano após reclamar que China 'compraria o Brasil', Bolsonaro quer vender estatais e commodities em visita a Xi Jinping
BBC News Brasil a Pequim
23/19/19
23/19/19
O presidente Jair Bolsonaro chega
nesta quarta-feira (23/10) ao momento mais importante de sua viagem pela Ásia e
pelo Oriente Médio com o desafio de avançar em três grandes objetivos
econômicos, ao mesmo tempo em que tenta minimizar obstáculos políticos e
ideológicos que surgiram após sua posse.
Em sua estreia em solo chinês, o
brasileiro aposta no eixo-chave do maior projeto de investimentos de seu
governo: encontrar empresários dispostos a comprar estatais em processo de
privatização, como a Eletrobras, os Correios e setores da Petrobras.
Também quer mostrar um Brasil mais disposto do que nunca a vender soja, carne,
petróleo e minério de ferro ao gigante asiático.
Por fim, busca convencer
megainvestidores a construirem ferrovias, estradas, portos e usinas de energia
na expectativa de destravar a economia brasileira, estacionada em problemas
históricos de infraestrutura.
O cliente é um velho conhecido.
Há 10 anos, a China é o principal parceiro comercial do Brasil no mundo. A
relação entre os dois países vem se aprimorando com o passar do tempo: em 2018,
a soma das importações e exportações entre os dois países alcançou um recorde
inédito na América Latina — US$ 98,9 bilhões, ou quase R$ 400 bilhões,
sinalizando um ápice na relação bilateral.
Mas o governo brasileiro também
colocou pedras no caminho para atingir suas próprias metas.
Há um ano, em outubro de 2018,
Bolsonaro, ainda candidato à Presidência, subiu o tom contra o país asiático e
ganhou manchetes no mundo inteiro ao dizer: "A China não compra no Brasil.
A China está comprando o Brasil".
Cinco meses depois, em aula magna
a formandos do Itamaraty, o chanceler bolsonarista Ernesto Araújo disse a
diplomatas que o Brasil não iria "vender sua alma" para
"exportar minério de ferro e soja" para a China comunista.
O cenário nesta semana é o
oposto. Prestes a encontrar o presidente chinês, Xi Jinping, na capital do país
com o maior Partido Comunista do planeta, o líder brasileiro tenta aproveitar o
vácuo aberto pela guerra comercial entre China e EUA para ampliar ao máximo
seus negócios com os chineses.
Em meio a tantos altos e baixos, quais
devem ser os resultados práticos da visita e como os chineses reagirão à
reaproximação bolsonarista? Que impactos ela pode ter na relação amistosa entre
o brasileiro e o presidente americano, Donald Trump? E por que os brasileiros
exportam apenas commodities a um dos mercado consumidores mais ávidos por
produtos industrializados em todo o planeta?
Choque de realidade
A viagem é descrita por representantes do mercado, da academia e da diplomacia ouvidos pela BBC News Brasil na China como "controle de danos", "choque de realidade" e "correção entre o discurso eleitoral e o de governo".
A viagem é descrita por representantes do mercado, da academia e da diplomacia ouvidos pela BBC News Brasil na China como "controle de danos", "choque de realidade" e "correção entre o discurso eleitoral e o de governo".
"A gente passou por atritos
profundos na relação bilateral durante a campanha eleitoral", avalia Tulio
Cariello, coordenador do Conselho Empresarial Brasil-China, que reúne as
principais empresas brasileiras do setor. "As frases polêmicas do governo
não faziam o menor sentido por uma razão muito simples: a relação entre Brasil
e China é hoje essencialmente econômica, e não política."
As exportações brasileiras para a
China são compostas principalmente por produtos básicos, sem valor agregado. A
soja ocupa o topo da lista, com 35% das exportações, seguida por óleos brutos
de petróleo (24%) e minério de ferro (21%).
Do outro lado, segundo o
Itamaraty, as importações brasileiras de produtos chineses "correspondem,
em sua quase totalidade, a produtos manufaturados" — a maioria é formada
por componentes elétricos e bens de consumo.
Representando o lado chinês, o
especialista em infraestrutura Jesse Guimarães, diretor de uma das maiores
multinacionais chinesas de construção pesada, classifica a viagem como uma
oportunidade de "destravar mais de 200 projetos de infraestrutura
apresentados pelo governo Bolsonaro para empresários chineses" e
"aproveitar um momento recorde de otimismo no empresariado asiático com o
Brasil".
Segundo Guimarães, que participou
de reuniões em Pequim entre politicos chineses e o vice-presidente brasileiro,
Hamilton Mourão, em maio deste ano, os principais projetos oferecidos pelos
brasileiros se referem a aeroportos, ferrovias e portos. Eles estão em fase de
finalização até que as concessões sejam oferecidas por meio de concorrências.
Para a professora Karin Vazquez,
chefe do Centro de Estudos dos BRICS da Universidade Fudan, em Xangai, o
presidente brasileiro desembarca na China após sofrer um "choque de
realidade" posterior às eleições.
"Há uma diferença normal
entre o discurso eleitoral e o de governo. O eleitoral usa um apelo popular,
exageros, uma retórica para ganhar um eleitorado que não conhece a China ou o
comércio internacional. É o que ganha voto", explica.
"Depois que assume, o
presidente é imediatamente pressionado pelo lobby do agronegócio, pelas
confederações de industria. Ele se dá conta que quase 30% da pauta de
exportações se refere à China. E percebe que não fazer negócios com chineses em
2019 é inconcebível para qualquer país", prossegue.
A China é o principal destino das
exportações brasileiras em todo o planeta. De janeiro a setembro de 2019, 27,6%
do total das exportações brasileiras foram para o país asiático. No mesmo
período, a China também ocupou o primeiro lugar entre os países de origem das
importações brasileiras, com 19,9% do total.
Favorável ao Brasil há 10 anos, o
superávit entre os dois países saltou de US$ 11,8 bilhões para US$ 29,5 bilhões
entre 2016 e 2018, de acordo com dados oficiais.
'China quer namorar o Brasil'
O pragmatismo com que os chineses são conhecidos no mundo dos negócios fala mais alto que qualquer sentimento de rancor ou desconfiança, na opinião dos entrevistados.
O pragmatismo com que os chineses são conhecidos no mundo dos negócios fala mais alto que qualquer sentimento de rancor ou desconfiança, na opinião dos entrevistados.
"O chinês sempre observa
calmamente o que acontece antes de fazer qualquer movimento. Eles não agem por
emoção ou impulso, como fez Bolsonaro", diz Eduardo Ponticelli, um
empresário brasileiro que vive há 12 anos na China intermediando importações de
produtos brasileiros e exportações para o Brasil.
A visita do vice-presidente
Mourão ao país, em maio, trouxe tranquilidade aos chineses, segundo diplomatas
ouvidos pela BBC News Brasil em condição de anonimato.
"Mourão acabou apertando as
mãos e acalmando Xi Jinping em pessoa, meses antes do chefe de Estado chinês
encontrar o presidente brasileiro", lembra um membro do Itamaraty. "É
um protocolo torto, mas mostrou que o governo brasileiro não pensa daquela
maneira."
Para Ponticelli, a experiência de
Mourão e o prestígio do ministro Paulo Guedes (Economia) desfizeram qualquer má
impressão.
"Hoje, o que ouço dos
chineses é que a China quer namorar o Brasil e roubá-lo do Trump", brinca.
O comentário surge em meio à
guerra comercial travada entre Washington e Pequim - um dos principais
impulsionadores do recorde nas trocas comerciais registrada no ano passado
entre chineses e brasileiros.
"No curto prazo, os ganhos
foram significativos principalmente no agronegócio e no mercado de soja",
lembra o doutor em ciência política Mauricio Santoro, especialista em relações
Brasil-China e professor do Departamento de Relações Internacionais da Uerj.
"Mas a guerra comercial cria
uma instabilidade grande no sistema multilateral de comércio, cria desrespeito
a regras da OMS, aumenta o protecionismo."
Chineses e americanos sinalizam
uma possível trégua por meio de um novo acordo comercial — que traria dor de
cabeça aos brasileiros. "Em uma situação de acordo, o Brasil perde, porque
chineses vão precisar comprar mais produtos agrícolas dos americanos", diz
Santoro.
Hoje, além de principal parceiro
comercial, segundo o Banco Central, a China é o 9º maior investidor no Brasil.
Os recursos chineses são destinados principalmente a energia (geração e
transmissão, além de petróleo e gás) e infraestrutura (portuária e
ferroviária), de acordo com o Ministério da Economia.
Honraria máxima a um Chefe de
Estado
A estrutura organizada pelo governo chinês para receber o líder brasileiro mostra que não parece haver ressentimentos sobre os comentários de Bolsonaro na eleição.
Na tarde de sexta-feira (horário
chinês), Bolsonaro será recebido no Grande Palácio do Povo pelo presidente Xi
JinPing, pelo primeiro-ministro, Li Keqiang, e pelo Presidente da Assembleia
Popular da China, Li Zhanshu.
À noite, Xi Jinping oferece
jantar ao presidente brasileiro junto aos principais CEOs chineses — entre os
quais, especula-se, o magnata Jack Ma, fundador do império de vendas online
AliBaba.
Além dos encontros com as
autoridades chinesas, Bolsonaro também participa de um jantar organizado pelo
presidente da Fiesp, Paulo Skaf, com empresários brasileiros que fazem negócios
com a China.
"Se compararmos essa viagem
com a abertura da Assembleia-Geral da ONU, veremos outro Bolsonaro. Nas Nações
Unidas, ele mostrou seu lado mais extremo, com a retórica antiglobalista e um
nacionalista extremado que não reconhece preocupações globais, como meio
ambiente. Na China, ele vai se comportar de forma mais trivial, cordial, o que
já é um ganho para o Brasil", avalia Mauricio Santoro, da UERJ.
Mas, junto a toda a cordialidade
do encontro, obstáculos politicos podem dificultar a lua de mel econômica entre
os presidentes.
Nova Rota da Seda
Avaliado como o maior projeto de política externa da China em 40 anos, a Nova Rota da Seda é um mega programa de investimentos em infraestrutura que deve movimentar mais de 1 trilhão de dólares vindos da China em mais de 70 países com a construção de portos, ferrovias, estradas, gasodutos e oleodutos.
Avaliado como o maior projeto de política externa da China em 40 anos, a Nova Rota da Seda é um mega programa de investimentos em infraestrutura que deve movimentar mais de 1 trilhão de dólares vindos da China em mais de 70 países com a construção de portos, ferrovias, estradas, gasodutos e oleodutos.
O objetivo chinês é expandir o
acesso de seus produtos a outros mercados, ao mesmo tempo em que multiplica a
presença de suas multinacionais ao redor do mundo e amplia seu acesso a
recursos naturais escassos em seu território.
O projeto, que inicialmente se
concentrava na Ásia e na África, se expandiu para a América Latina, onde já tem
a adesão de 19 países — o principal deles é o Chile, somado a economias menores
no Caribe e na América Central.
A adesão formal de uma economia
forte como a brasileira ao projeto seria uma enorme vitória política para os
chineses e é um dos principais esforços da diplomacia de Pequim no
momento.
O problema, no entanto, é a
reação que isso causaria em Washington.
"O discurso do Brasil é de
querer estes investimentos, mas pelo Programa de Parceria de Investimentos
(PPI), e não pela Rota da Seda", explica Santoro.
"O Brasil quer evitar o ônus
político na sua relação com os EUA. É uma preocupação legítima. Apoiar o
projeto chinês é se posicionar diante de uma disputa comercial intensa entre o
país asiático e Donald Trump, que é um parceiro-chave do Brasil neste
momento", diz.
Para a professora Karin Vazquez,
o Brasil precisaria de contrapartidas fortes para aderir ao projeto.
"Traria um ganho político
imenso para a China, na medida em que a China tenta aumentar seu foot print
(pegada, em inglês) na América Latina. Mas, do lado do Brasil, não me parecem
claras as vantagens para um país que já atrai investimentos do tipo há décadas
e já é uma das maiores economias do continente."
Tulio Cariello, do Conselho
Empresarial Brasil-China, concorda. "Uma eventual assinatura teria efeito
mais político do que econômico. A vantagem teria que estar muito clara para o
Brasil embarcar", afirma.
Commodities, burocracia e o
mercado consumidor chinês
Nos últimos anos, o governo chinês tem investido pesado na expansão da importância do consumo no seu PIB.
De 1978, com o processo de
abertura da economia chinesa, até hoje, o PIB do país cresceu 172 vezes.
O analfabetismo, que alcançava
80% da população, hoje se aproxima de zero. A expectativa de vida saltou de 35
anos para 75.
Com isso, uma nova classe média,
mais conectada aos costumes do ocidente e ávida por consumo, se consolidou no
país.
"Muitos politicos e
empresários no Brasil têm uma visão da China pré-revolução, ou o país que
produzia artigos baratos e de baixa qualidade. É uma visão muito estigmatizada
e antiga, que faz com o que o Brasil não aproveite as maiores oportunidades
desse mercado", avalia a professora Vazquez.
"Estamos falando sobre um
país que desenvolveu uma lua artificial para oferecer energia, que criou o
trem-bala mais rápido do mundo, que lidera a quarta revolução industrial,
pautada por tecnologia de ponta, cidades inteligentes, big data,
ciber-segurança", diz.
Mas por que o Brasil não exporta
produtos industrializados para essa sociedade em ebulição?
O caso do café oferece respostas
interessantes.
"O Brasil é o maior exportador mundial de café bruto. Pela primeira vez na história, os chineses, tradicionais consumidores de chá, estão se tornando grandes bebedores de café. O mercado está crescendo a quase 40% ao ano. Seria ótimo para o Brasil", conta Mauricio Santoro.
O jovem chinês, no entanto, não
procura o café ensacado tradicional do supermercado, mas variedades
"gourmet".
"Este não é o café
brasileiro. É um café com forte valor agregado em marketing. Um café para um
consumidor que está ficando mais refinado, mais rico. O Brasil poderia entrar
nesse mercado, mas ainda não associa seus produtos a esta imagem e acabamos
ficando presos às matérias-primas."
Do outro lado, os chineses
reclamam da dificuldade de investir no Brasil — principalmente a burocracia
estatal.
"O ICMS é um bom exemplo. Os
chineses reclamam muito porque há uma regra diferente para cada Estado. No
final das contas, são várias regras diferentes para pagamentos de impostos e
isso dificulta muito o trabalho", diz Santoro.
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