A outra previdência
ESTADÃO
15/11/17
*Érica Gorga
No livro A Revolução dos Fundos de Pensão (1995, com original de 1976), Peter
Drucker demonstrou que investidores institucionais, especialmente os fundos de
pensão, se haviam tornado os grandes proprietários das maiores corporações
americanas, fenômeno que chamou de “a revolução despercebida”. De modo
pioneiro, Drucker suscitou questões decorrentes do envelhecimento da população
para o capitalismo dos EUA, concluindo que o futuro da economia e da sociedade
americana dependeria da gestão de fundos de pensão e do sistema de seguridade
ou previdência social.
Drucker defendeu a tese de que tais fundos, para bem gerirem os recursos de
seus pensionistas investidos em ações de diferentes empresas, não poderiam ser
investidores passivos: deveriam demandar voz nas companhias em que investissem
– e até ter poder de veto sobre indicações para seus conselheiros ou diretores.
Segundo ele, fundos de pensão – por intermédio de seus gestores – “têm
responsabilidade de assegurar o desempenho e o resultado nas maiores e mais
importantes companhias americanas”, cobrando responsabilidade financeira.
Os fundos de pensão americanos tornaram-se propulsores da boa gestão
empresarial. O Sistema de Aposentadoria dos Servidores Públicos da Califórnia
(CalPERS), um dos maiores, é mundialmente conhecido por incentivar o ativismo
de acionistas, criando princípios globais de governança corporativa que guiam
padrões de administração nas companhias em que investe seu bilionário
patrimônio ao redor do mundo. O sistema de previdência gerido por fundos de
pensão é força motriz da competitividade americana, fornecendo financiamento
empresarial por meio de investimentos no mercado acionário ou de capitais.
Criaram-se e desenvolveram-se mecanismos e organizações que monitoram o desempenho
das companhias para assegurar os direitos de investidores e boa rentabilidade a
fundos de pensão – e a seus pensionistas. Consolidou-se um segmento de mercado
especializado que presta serviços de consultoria, assessoria e auditoria
contábil, financeira e de governança corporativa. A divisão e a especialização
do trabalho nos moldes de Adam Smith é tal que bancas de advocacia que
representam fundos de pensão nos processos contra as companhias que os lesaram
em fraudes e crimes corporativos, por questões de ética e conflitos de
interesses, são completamente separadas e independentes das grandes bancas que
defendem as companhias e seus administradores e a elas prestam serviços. Leis e
jurisprudência beneficiando investidores institucionais avançaram.
O Brasil, até o presente, está alheio a tal evolução, apesar da relevância do
patrimônio dos fundos de pensão para a economia nacional, que se situa na casa
de R$ 1 trilhão, segundo cálculos da CVM, montante bem superior ao orçamento de
2017 para o Regime Geral da Previdência, de R$ 562 bilhões. Não se vê na
prática progresso consistente dos fundos de pensão para defender o interesse de
seus pensionistas e assim alimentar o crescimento econômico do País.
De acordo com a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc),
fundos de pensão brasileiros registraram déficit de R$ 70,6 bilhões em 2016. O
déficit cresceu de R$ 9 bilhões para R$ 77,8 bilhões de 2012 a 2015, isto é,
700% em apenas quatro anos. Dez fundos concentram 88% do déficit. Os rombos de
Petros (Petrobrás), Funcef (Caixa) e Postalis (Correios) somam R$ 30
bilhões (Estado, 24/5 e 1.º/5).
CORREIOS
Grande parte das aplicações dos fundos de pensão é concentrada em ações de
empresas que se envolveram com corrupção sistêmica revelada pelas Operações
Lava Jato e Greenfield. Estima-se que só os ilícitos investigados na Greenfield
causaram cerca de R$ 54 bilhões de prejuízos, que afetaram quase 2 milhões de
beneficiários dos fundos de pensão (Estado, 18/6). É sintomático, por exemplo,
que o Petros tenha investido em negócios do Grupo J&F, controlado pelos
irmãos Batista, e o Funcef tenha amargado prejuízos de R$ 17 bilhões na Sete
Brasil, investimentos eivados de ilicitudes.
Tais perdas levaram à necessidade de aportes adicionais imediatos pelas
empresas e por funcionários, tanto da ativa como aposentados, para evitar o
colapso de seus sistemas de previdência complementar. Beneficiários do Petros e
a própria Petrobrás começarão a repor perdas com contribuição extra de, no
mínimo, R$ 17 bilhões, metade cada. Mais de 84 mil funcionários sofrem
descontos e contribuições extras de 20% a 30% do valor de seus benefícios para
cobrir o rombo do Postalis.
Não há transparência suficiente ou debate sério sobre quanto dos déficits foram
causados por desequilíbrios atuariais decorrentes da longevidade dos
beneficiários ou por investimentos mal feitos ou fraudulentos. Não há histórico
consistente de ações judiciais dos próprios fundos de pensão para buscar
reparação de prejuízos dos pensionistas causados por corrupção. Inexiste
cultura de cobrança dos gestores dos fundos pelos deveres fiduciários devidos
aos pensionistas. Em vários casos suspeita-se de conluio de gestores dos fundos
com administradores de companhias para a perpetração de ilícitos. Já apontei a
insuficiência do Direito Penal para solucionar o problema, posto que a
reparação financeira dos lesados depende de aparato de ressarcimento cível não
desenvolvido no Brasil.
O atual debate nacional sobre a reforma da Previdência é parcial, pois se restringe
equivocadamente à parte diretamente gerida pelo Estado, negligenciando os
graves problemas do sistema de previdência complementar. Não basta reformar a
Previdência oficial, há que pensar na urgente reforma de leis e institutos
jurídicos anacrônicos vigentes para proteção de pensionistas do sistema de
previdência complementar.
*Doutora em direito pela USP, com pós-doutoramento na Universidade do Texas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário