O site Migalhas trouxe recentemente artigo intitulado “Correios: Sem privatização, sem desinformação e sem inconstitucionalidade”.
Como a ADCAP tem sustentado posicionamento
oposto ao apresentado no artigo, os advogados Lucas (Consultor da ADCAP) e
Roberval (Diretor Jurídico da ADCAP) prepararam um outro artigo que foi hoje
publicado pelo mesmo site, conforme pode ser visto a seguir.
Boa Leitura!
Direção Nacional da
ADCAP.
--------------------------------------------------------------------------
Correios: Privatização,
informação e
inconstitucionalidade do PL
591/20
Proposta do
governo pretende sim burlar, por meio de lei, regramento constitucional dos
serviços postais sem emenda à Constituição
Migalhas
14 de maio de 2021
Por Lucas de Castro Rivas e
Roberval Borges Correa
Recente
publicação eletrônica em importante informativo jurídico eletrônico1 defende
que o projeto de lei 591/20 tanto não implica privatização
da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT, quanto não padece de inconsti-
tucionalidade e, por isso, haveria "muita desinformação (ainda que de boa-fé)
circulando nos meios de comunicação e, sobretudo, nas redes sociais".
Em
que pese o esforço argumentativo dos articulistas e, sem dúvida, seu
comprometimento com a informação do meio jurídico em particular, mas também do
público em geral, uma análise aprofundada das mesmas premissas por eles ado-
tadas revela que o Congresso Nacional está, de fato, em vias de se debruçar
sobre um projeto inconstitucional de privatização dos serviços postais.
Essa
constatação, todavia, não é uma "oposição, capitaneada pelos partidos mais à
esquerda do espectro ideológico". Muito pelo contrário,
trata-se de um juízo jurídico firme, ancorado em conceitos seguros, já
consolidados na dogmática constitucional contemporânea e que, nessa medida, não
se prestam a determinada orientação político-partidária.
No
Estado Democrático de Direito, a legalidade em sentido amplo no que se incluem,
portanto, as normas constitucionais não está à disposição dos intérpretes, no
caso, nem a quem defenda ou não a desestatização dos serviços postais.
Portanto, alegar que determina leitura constitucional é infundada a pretexto de
que seja ideológica é recorrer ao arbítrio típico de práticas retóricas
totalitárias.
A
seguir, pretende-se demonstrar, ainda que em breves linhas, mas com a
profundidade que a reflexão sobre a reforma do setor postal no país exige, o
equívoco em manejar superficialmente categorias analíticas constitucionais e
legais que delimitam a moldura dos limites de conformação do legislador
ordinário na matéria e, via de consequência, do que pode ou não dispor.
PRIVATIZAÇÃO DOS SERVIÇOS
POSTAIS
Sustenta-se
que "em nenhum momento o PL 591/21 trata de privatização da ECT, assim
entendida a alienação do controle da empresa para o setor privado".
Essa afirmação, ainda que procedente afinal, a proposta do Governo é apenas de
transformar os Correios de empresa pública em sociedade de economia mista
acaba, em verdade, por mais confundir do que esclarecer.
É
preciso deixar claro, desde logo, que não há definição legal do que seja
privatização, sendo um conceito controverso até mesmo na doutrina jurídica2,
a qual o tributa, em regra, a outras áreas de conhecimento, mas que, em linhas
ge- rais, o traduz como a transferência, em sentido amplo, de uma atividade da
iniciativa estatal para a privada.
Juridicamente,
essa noção corresponde à de desestatização, que, nos termos da lei
9.491/97, pode se dar mediante alienação, pela União, de direitos sobre
sociedades; através da transferência, para a iniciativa privada, da execução de
serviços públicos explorados pela União, diretamente ou através de entidades
controladas; ou, enfim, pela transferência ou outorga de direitos sobre bens
móveis e imóveis da União3.
Assim,
quando se fala, de modo coloquial, em privatização, mas, no sentido
técnico, em desestatização, refere-se não necessariamente à venda de
uma empresa estatal sociedade de economia mista, a exemplo da Petrobrás, ou
empresa pú- blica, como os Correios -, mas também à eventual prestação indireta
de serviços públicos, mediante concessão, autorização ou permissão (CF, art. 175).
Sem
ainda nem mesmo perquirir a (im)possibilidade de tal prestação indireta ocorrer
especificamente no caso dos serviços postais pelo menos não sem emenda à
Constituição que altere ou revogue o inciso X do seu artigo 21, é fácil
verificar que o PL 591/21 efetivamente propõe sim a privatização (leia-se:
desestatização) dos serviços postais.
É
certo que, como dito linhas atrás, não há, até agora, iniciativa para alienação
do controle societário dos Correios, mas há privatização sim, porque o PL
591/21 propõe a quebra do privilégio postal, através da chamada "celebração
de contratos de concessão comum ou patrocinada"4,
ou, como advertiram os próprios articulistas, cuida-se de uma parceria
público-privada.
Em
resumo, por respeito ao leitor e com compromisso a verdade, tem-se que, em
termos técnicos, independente da venda ou não dos Correios que, de fato, não
está explicitada até o momento, o que o PL 591/21 propõe mesmo é a privatização
(desestatização) dos serviços postais, o que é tão grave
quanto seria a alienação do controle da estatal e que, de resto, é
flagrantemente inconstitucional, como se demonstra a seguir.
Antes,
porém, duas observações são importantes nesse contexto. A primeira delas é a de
que a privatização dos serviços postais é condição sine qua non para a dos
Correios, ou seja, sem aquela, não é possível vender a empresa, de maneira que
a ausência de previsão para alienação do controle societários dos Correios no
PL 591/21 é apenas um esconderijo semântico para facilitar a aprovação do
texto.
Em
recentes precedentes5, o Supremo Tribunal Federal - STF sedimentou o
entendimento de que para a alienação do controle societário de estatais, como
os Correios, basta sua inclusão no Plano Nacional de Desestatização (lei
9.491/97), mediante simples decreto do Presidente da República,
independentemente de autorização legislativa específica do Congresso Nacional.
Essa
providência, em relação aos Correios, aliás, já foi até mesmo adotada
pelo decreto 10.674/216. Significa, noutras palavras,
que, em última análise, o PL 591/21 não configura apenas privatização do
setor postal, mas, mais do que isso, já constitui a primeira etapa necessária
para alienação dos Correios.
Em
segundo lugar, restando claro que, no PL 591/21, com o que se de para é a
privatização dos serviços postais e, no limite, a preparação também para a dos
Correios, são, de todo modo, comuns a ambas os prejuízos à universalidade e à
continuidade dos serviços, à modicidade tarifária e, sobretudo, a outros interesses
constitucionais tutelados pelo serviço postal (dignidade da pessoa humana,
soberania e coesão social, combate as assimetrias regionais)7.
INCONSTITUCIONALIDADE DO PL
591/21
No
que diz respeito à inconstitucionalidade do PL 591/21, os articulistas defendem
a ausência de qualquer vício na proposição recorrendo ao argumento de que a
conformação infraconstitucional do serviço postal foi deferida pela
Constituição ao legislador ordinário, evidenciando espaço de opção política.
Dizem,
então, que "[a] forma pela qual os serviços postais vão ser disponibilizados à
sociedade não está delimitada no texto constitucional. A escolha aqui é
política. Não há um caminha pré-definido. Pode o legislador optar pela adoção
do regime jurídico próprios dos serviços públicos, assim como pode aderir a um
regime mais privatístico, via delegação, ficando para o Estado o papel
regulador, nos termos do art. 174, da Constituição Federal."
Sem
embargo do louvável exercício hermenêutico dos autores, afigura-se razoável
guardar o dever de lealdade com o leitor, seja ele especializado os
profissionais do Direito ou não o leigo, ainda mais quando se socorre de
transcrição, ao encontro de sua compreensão, em citação do voto do relator da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 46, mas cujo
entendimento ficou vencido.
Na ADPF 46, o Supremo discutiu profundamente o sentido do
inciso X do artigo 20 da Constituição, que é a norma constitucional de
referência para a legislação postal e, por consequência, também para o PL
591/21, segundo o qual, "[c]ompete à União manter o serviço postal e o
correio aéreo nacional". Formando-se, então, três correntes
distintas dentre os posicionamentos dos Ministros do Tribunal.
Vencido,
o relator, Ministro Marco Aurélio, votou pela não recepção da lei
6.538/78, entendendo que o serviço postal não consiste em serviço público,
mas em atividade econômica. Caberia ao legislador, como ressaltado pelos
articulistas a que nos contrapomos, promover uma escolha política de como a
União disciplinar o mercado8.
Igualmente
vencido, o Ministro Gilmar Mendes, conquanto entendesse, à luz do inciso X do
artigo 21 da Constituição, que o serviço postal seria serviço público, não
atividade econômica, também concluiu que "a Constituição concedeu
ao legis- lador ordinário alguma flexibilidade quanto à escolha adequada do
modo pelo qual a Administração assegurará a prestação do serviço postal para
toda a sociedade"9.
Em
comum a tais posições vencidas está a liberdade do legislador em determinar,
inclusive mediante transpasse à iniciativa privada, a prestação do serviço
postal. Sucede que a maioria formada no julgamento da ADPF 46, seguindo o voto
do Ministro Eros Grau, entendeu que o inciso X do artigo 21 da Constituição
exprime que o serviço postal é serviço público prestado em regime exclusivo da
União.
A
definição de que se trata de serviço público, significa, juridicamente, que os
serviços postais não são atividade econômica em sentido estritoregida pelos
princípios constitucionais da ordem econômica (CF, art. 170) e, logo, sua
prestação pela União não constitui intervenção estatal excepcional, como a
necessária ao imperativo de segurança nacional ou a relevante interesse
coletivo (CF, art. 173).
De
que se cuida de prestação em regime de privilégio exclusivo, quer dizer,
tecnicamente, que tanto a titularidade quanto a prestação dos serviços postais
são da União, ainda que de forma descentralizada, mediante outorga ,
através de esta- tal, atualmente, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos
- ECT.
Da
decisão da ADPF 46 se extrai razão de decidir translúcida e estruturante:
enquanto serviço público em regime de privilégio exclusivo da União (CF, art.
20, X), o serviço postal é insuscetível de transpasse à iniciativa privada, nem
mes- mo por prestação indireta de serviços públicos, como concessão, autorização
e permissão (CF, art. 174).
Embora
a decisão da ADPF 46 seja, sem dúvida, um mosaico de reflexões, como os
articulistas bem lembraram a observação de Ana Paula de Barcellos10 fruto
muito provavelmente do modelo de deliberação per seriatim adotado no Su- premo
-, é indene de dúvidas que a maioria formada convergiu nessa premissa quanto a
singularidade da prestação do serviço postal em regime de privilégio exclusivo
da União.
Amostra
disso, a propósito, é o voto dos vogais que acompanharam à época, o voto
condutor, como o Ministro Ayres Britto: "Além dessa titularidade
pública federal, parecem não ser passível de transpasse para a iniciativa
privada, mediante os conhecidos institutos da autorização, da concessão ou da
permissão, vale dizer até não estou exagerando ao assim asseverar que é o único
serviço público não passível de transpasse para a iniciativa privada, mediante
os citados institutos".11
Esse
entendimento da ADPF 46 vem sendo ratificado, na jurisdição constitucional, em
sucessivos precedentes obrigatórios (RE 601.392-RG, 627.051-RG e 773.992-RG), de sorte que não cabe ao legislador ordinário
subverter a interpretação autêntica de cláusula constitucional (CF, art. 20, X)
conferida pelo Supremo Tribunal Federal.
Assim,
o PL 591/21, propondo permitir a privatização dos serviços pois tais mediante
sua concessão à iniciativa privada, artificiosamente contrariando o privilégio
postal da União (CF, art. 21, X), colide frontalmente com a
jurisprudência constitucional (leis in your face), assumindo o risco de
nascer com presunção iuris tantum de
inconstitucionalidade12.
Não
se está a dizer, obviamente, que a desestatização dos serviços postais é
cláusula pétrea e, portanto, imutável, mas apenas que para que seja levada a
efeito, ela depende de alteração ou até mesmo de revogação do inciso X do
artigo 21 da Constituição, não sendo, pois, viável através de projeto de lei,
como se almeja no PL 591/21.
Na
vida institucional brasileira, aliás, há precedente dessa natureza. Para a
privatização, mediante possibilidade de autorização, concessão ou permissão dos
serviços de telecomunicações, foi necessária a aprovação da Emenda à Constitui-
ção nº 8/1995, alterando o inciso XI do seu artigo 21, permitindo a prestação
indireta de tais serviços públicos.
Em
resumo, a modernização regulatória do setor postal brasileiro é perfeitamente
possível através do PL 591/21, mas a transmudação dos contornos constitucionais
do privilégio postal prestado em regime exclusivo (CF, art. 21, X),
definitivamente, não, sob pena de flagrante inconstitucionalidade da lei a ser
promulgada.
CONCLUSÕES
No
Estado Democrático de Direito é preciso respeitar, primeiro, a autoridade e a
força normativa da Constituição. Isso nada tem a ver com espectros ideológico
ou político-partidário, como sugeriram os autores em seu artigo, mas com a
obser- vância dos dogmas centrais sobre os quais repousa a estabilidade do
Constitucionalismo Contemporâneo.
Fora
disso, qualquer proposta de modernização do setor postal que vise a sua desestatização
deve passar por um filtro constitucional, em primeiro lugar, formal, suportando
o ônus dessas respectivas escolhas políticas da maioria de
ocasião, notadamente, se for o caso, o quórum qualificado e os turnos de
votação para alteração da Constituição.
Do
ponto de vista material, não foi por acaso que a Constituição estabeleceu que
compete à União manter o serviço postal (CF, art. 21, X). O serviço postal num
país de dimensões continentais como o Brasil cumpre funções constitucionais ou-
tras além da simples comunicação epistolar ou telegráfica, o que confirma a
correção da interpretação da jurisprudência constitucional de se tratar de um
serviço público prestado em regime de privilégio exclusivo.
Com
efeito, é que o serviço postal constitucional tutela, na verdade, todos os
objetos postais sujeitos à universalização, que garantem a dignidade da pessoa
humana, a continuidade do serviço, a coesão social e a soberania nacional das
po- pulações ao longo de todos os rincões do país, não só das áreas onde à
viabilidade de competição para a prestação ótima do serviço.
O PL 591/21 tem condições de equalizar essas necessidades e modernizar a legislação postalbrasileira,inclusive, com relação à organização societáriados Correios e à necessária regulação do setor de logística de serviços de courrier,como se propõe, mas sem que, para tanto, comprometa e ofenda o Estado de Direito e as garantias Constitucionais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário