terça-feira, 1 de novembro de 2016

Suspensão de patrocínio dos Correios afeta setor cultural


O Globo
28/10/2016

Um dos maiores programas de fomento cultural do país, o Sistema de Seleção de Patrocínios dos Correios foi suspenso, no último dia 10, pela direção da empresa sediada em Brasília. A notícia, publicada na coluna Gente Boa anteontem, afeta realizadores culturais de seis estados que tiveram projetos selecionados na mais recente edição do edital: em 2015, 79 propostas foram aprovadas para realização entre agosto de 2015 e dezembro de 2017. O edital previa um aporte de R$ 18,8 milhões e, até agora, 33 projetos foram contratados, e R$ 7,9 milhões, investidos. Com o cancelamento, 41 projetos ficam sem o prêmio, e os Correios deixam de pagar R$ 10,9 milhões. A empresa confirmou ao GLOBO a suspensão de “processos de contratação, afetando também os de patrocínio”.

A medida impacta nove projetos apenas no Rio de Janeiro, assim como outros que integrariam a programação do Museu Nacional dos Correios, em Brasília, e mais seis unidades do Centro Cultural Correios, localizadas, além do Rio, em Niterói, São Paulo, Recife, Salvador, Fortaleza e Juiz de Fora. Entre as propostas afetadas, estão a mostra “The New Orleans series”, que apresentaria telas do compositor e prêmio Nobel Bob Dylan, e a peça “A invenção do amor”, que estrearia no teatro do Rio no próximo dia 10. Além de perder R$ 292,8 mil previstos pelo edital, o espetáculo se viu sem o palco dos Correios. Com direção de produção de Alice Cavalcante e idealizado pelos atores Guilherme Piva e Marcelo Valle, a montagem teve de procurar outro teatro.

— Ao lado dos Correios, temos outro patrocinador (Bradesco) e, como já utilizamos tais recursos via Lei Rouanet, e o dinheiro é público, temos que arcar com esse compromisso, mesmo com prejuízo — explica Alice.

A produtora diz ter recebido a informação da suspensão por telefone, em 10 de outubro, e desde então buscava contornar o imbróglio com a direção dos Correios e do Centro Cultural do Rio. Sem conseguir reverter a decisão e sem ter autorização para uso da sala, na última segunda-feira Alice assinou contrato com o Teatro Leblon, que receberá a peça no próximo dia 10.

— Quis marcar uma visita técnica ao teatro, mas me disseram que não poderia. Estranhei, liguei para lá e recebi a informação de que tinham suspendido o patrocínio — conta. — Até hoje não recebi um comunicado oficial do cancelamento, apenas um e-mail da gerência do Rio lamentando.

Alice ainda não havia assinado o contrato com a instituição, mas já tinha cumprido diferentes etapas do processo. O texto do edital informa que o patrocínio é efetivado “mediante a assinatura de contrato entre as partes”, que é “condicionada ao atendimento integral das exigências do processo de contratação, incluindo a negociação do valor do investimento, do período e do local de realização, das contrapartidas e demais condições”.

— Nós já havíamos concluído quase todas essas etapas, como negociação de valor, data, local, contrapartida... Tudo documentado e pronto para assinar — afirma Alice. — O nosso setor sabe que os contratos são sempre assinados com pouca antecedência, às vezes na semana da estreia, mas tocamos a produção pela confiança na instituição. Ganhar um edital público sempre foi uma garantia de realização. Hoje, não mais. Isso gera um enorme desgaste financeiro e de imagem para a nossa empresa e para todo o setor cultural.

Orçada em cerca de R$ 700 mil, “A invenção do amor” foi reduzida a quase metade do seu escopo, e a produtora, agora, trabalha para renegociar valores de cachê com a equipe e estuda que medida legal tomar para reduzir seu prejuízo.

— Suspenderam um processo em andamento sem qualquer aviso ou tentativa de negociação, e agora tenho um prejuízo capaz de acabar com uma empresa como a minha — reclama. — Não são apenas projetos que deixam de acontecer, mas empresas que podem fechar as portas com isso.

EQUIPAMENTOS CONTINUARÃO ABERTOS

Em situação parecida está a produtora Heloisa Alves, que planejava para dezembro a abertura da exposição “Alegrarte”, a partir de criações do artista plástico e grafiteiro Toz. Há poucos dias ela recebeu um e-mail da gerência do Centro Cultural do Rio informando que “os patrocínios culturais estão suspensos até que a empresa recupere a sua saúde financeira”, mas sem qualquer previsão ou garantia de que os projetos voltariam a acontecer. Ao contrário da produção da peça, Heloisa contava apenas com os recursos dos Correios para cobrir o seu orçamento, de R$ 289 mil. Após receber, em 2015, a notícia de que sua exposição havia sido selecionada, a produtora deixou de concorrer a outros editais públicos. O dos Correios explicita que é “facultada ao proponente a captação complementar dos recursos necessários à viabilização do projeto. Entretanto, não serão contratados projetos que tenham o patrocínio compartilhado com empresas concorrentes dos Correios”.

— Iria realizar todo o projeto com esse valor, e não concorri a outros editais porque pensava que o projeto estava garantido — diz. — É um absurdo o cancelamento. Isso é um problema da Cultura, uma questão nacional, e esperamos que o ministro (Marcelo Calero) atue e tente resolver uma situação tão grave como essa. Estamos estudando uma ação coletiva contra os Correios. Afinal, só recebi um e-mail, nada mais.

Procurado pelo GLOBO, o MinC informou que os “editais dos Correios são geridos por eles, sem ingerência do Ministério da Cultura sobre esses processos decisórios”. Já os Correios informaram que “a empresa, dentre as medidas adotadas para sua recuperação financeira, suspendeu processos de contratação, afetando também os de patrocínio. Considerando que as medidas refletem uma situação momentânea, qualquer mudança nesse cenário que possa implicar na revisão da decisão será comunicada pela estatal diretamente aos proponentes selecionados”. A empresa informou, ainda, que o Centro Cultural do Rio, assim como outras unidades, manterão “sua programação por meio da cessão de espaço para realização de peças e exposições”.

Em reação à notícia, a Associação dos Produtores de Teatro (APTR) encaminhou aos Correios um documento que cobra uma revisão urgente da paralisação dos projetos aprovados, lembrando que, “ao lançar um edital e, sobretudo, pronunciar seu resultado, as verbas para tal fim já estão endereçadas e comprometidas”. O texto destaca ainda as consequências da decisão: “centenas de profissionais (muitos deles já contratados) perdem seus empregos, produtores perdem minimamente seis meses de sua organização e trabalho”.

Desde 2004, os Correios utilizam editais públicos com vistas à concessão de patrocínio. Além do processo de seleção dedicado ao fomento de projetos culturais, a instituição também lança, em caráter bienal, o Edital de Ocupação de Unidades Culturais, cuja última edição foi aberta neste ano — as propostas foram recebidas até o dia 5 de agosto. O programa visa à seleção de trabalhos para compor a grade dos equipamentos culturais até dezembro de 2017 e se restringe à autorização de uso de espaço, sem direcionamento de recursos dos Correios como patrocínio. Tais permissões de uso — para as sete unidades mantidas pela instituição no país — não foram canceladas, mantendo assim os prédios em funcionamento.

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