Criminalidade veta Correios em quase metade do Rio
FOLHA DE SÃO PAULO
19/2/18
19/2/18
Quatro em cada 10 endereços da cidade têm restrição de entrega
A explosão da criminalidade nos últimos anos levou os Correios a suspender a entrega de produtos em quase metade do Rio de Janeiro. Dos 27.616 endereços da cidade, há algum tipo de restrição em 12.037 deles, o que equivale a 43,6% do total.
Em mais da metade deles (6.469), a entrega só ocorre com o uso de aparato especial de segurança, como escolta armada, o que obrigatoriamente provoca a ampliação dos prazos para recebimento de produtos. No restante dos casos (5.568), porém, a distribuição não ocorre de forma nenhuma os clientes precisam buscar a encomenda em uma unidade dos Correios.
Esses dados fazem parte de levantamento feito pela Folha em dados que integram a base do sistema de informação dos Correios. Tabulação semelhante feita pela reportagem no final do ano passado revelou problemas de entrega na cidade de São Paulo em 29% dos CEPs da cidade.
Os dados do Rio de Janeiro, que teve intervenção federal na segurança pública decretada na última sextafeira (16) pelo presidente Michel Temer, mostram que há algum tipo de restrição em quase todas as regiões.
Na zona norte, por exemplo, há uma série de distritos com veto total de entregas em 100% dos endereços. Nesta lista estão bairros como Acari, Anchieta, Colégio e Costa Barros, a cerca de 30 km do centro da cidade.
A maior quantidade de CEPs sem restrição de entrega está na zona oeste e na zona sul, como Botafogo, Ipanema, Copacabana, mas até essas regiões na área nobre estão cravejadas de pontos sem acesso dos carteiros, em comunidades controladas pelo crime em meio a bairros mais ricos.
Em Costa Barros, na zona norte, mora a aposentada Dalva Deia Ferreira Silva, 58, que precisa pegar dois ônibus e enfrentar um trajeto de quase uma hora para buscar encomendas na unidade de distribuição dos Correios mais próxima da casa dela, em Ricardo de Albuquerque, bairro que também sofre com a restrição total de entrega.
Os carteiros não entregam produtos nem na própria rua da unidade desse bairro.
"Eu saí de casa às sete horas da manhã e cheguei só agora. É contramão para mim", disse ela à Folha, por volta das 9h20, no último sábado (17). "A situação nunca foi boa, mas agora está braba demais, está feia mesmo. Tem bandido demais", disse ela.
Morador de Deodoro, do outro lado da avenida Brasil, a principal via do Rio, o analista de sistema Alex Camargo Lima, 38, também passou nesse mesmo centro de distribuição dos Correios na manhã de sábado.
Em seu endereço, conta ele, os Correios só fazem pequenas entregas. "Só entregam envelopes. Se for uma caixinha, independente do valor do produto, eles não levam, porque é área de risco", disse ele que, devido a um acidente recente, foi à agência de muletas e de táxi. "Além do frete, que não é grátis, eu tenho que pagar R$ 20 de táxi para vir, e outros R$ 20 para voltar", disse.
O Rio de Janeiro passa por uma crise política e econômica, com graves reflexos na segurança pública. Desde junho de 2016, o Estado está em situação de calamidade pública. Não há recursos para pagar servidores e para contratar PMs aprovados em concurso. Policiais trabalham com armamento obsoleto e sem gasolina nos veículos. Faltam equipamentos como coletes e munição.
"Vamos ter esperança [sobre a intervenção federal]. Mas, infelizmente, vivemos apenas de promessas que nunca se concretizam", disse a mulher de Alex, a dona de casa Daniele Lima, 36, em referência a outras ações com participação das Forças Armadas os militares estão no Estado desde setembro passado, mas as ações dos criminosos não cessaram desde então.
O plano de intervenção federal deve ser implantado a partir desta semana, logo após a ação passar pelas aprovações da Câmara e do Senado. Os detalhes ainda não estão fechados, mas sabe-se que os militares trabalharão em conjunto com as polícias, já que, pela Constituição, as Forças Armadas não têm poder de polícia. Os 45 mil homens da PM e outros 10 mil da Polícia Civil serão o principal instrumento de trabalho do general do Exército Walter Souza Braga Netto, interventor federal no Estado. JUSTIÇA Morador de Anchieta, José dos Santos Trindade, 57, disse mover uma ação na Justiça para ter, pelo menos, os valores dos fretes devolvidos. Disse que faz uma série de compras pela internet e não tem descontos mesmo tendo que buscá-los na agência. "As cobranças chegam fácil, os Correios entregam, mas os produtos não chegam nunca", diz.
Já o bombeiro civil Diego Siqueira Maia, 32, também morador de Anchieta, chegou a usar o endereço da mãe, que mora em Del Castilho (também na zona norte).
Recentemente, segundo ele, as entregas de lá também foram suspensas a única alternativa é se deslocar até a agência. "Você compra pela internet para receber em casa, mas eles não entregam. Paguei R$ 25 de frete por um produto de R$ 89 e tive que buscar", disse.
"Não são só os Correios que não estão entregando", diz a dona de casa Silvia Machado de Oliveira, 60, moradora de Ricardo de Albuquerque. Ninguém mais entrega por aqui. Com razão. Até o caminhão de telhas, que comprei em São Paulo, roubaram.
Do outro lado do balcão, funcionários dos Correios contaram à Folha que a situação da região se agravou nos últimos dois anos. Agora, segundo eles, não há entrega em praticamente nenhum endereço daquela região.
Segundo eles, que pediram para não ter seus nomes divulgados, quando um veículo dos Correios trafega por esses bairros é praticamente certo que será abordado por criminosos. Bandidos fazem o carteiro abrir o compartimento de motos com baú para verificar se não há produto de valor.
Quando há um roubo de furgões dos Correios, ainda segundo eles, os carteiros ficam como reféns até que a carga seja descarregada.
De acordo com dados divulgados pelo governo do Rio, o roubo de carga cresceu mais de 300% no Estado de 2010 a 2017. Eles passaram de 2.619 registros naquele ano para 10.599 registros no ano passado. É nesse tipo de crime que são contabilizados os ataques contra os carros com produtos dos Correios.
Os funcionários também contaram que a suspensão de entrega nos pontos de maior incidência de crime não acabou com a tensão no trabalho. No mês passado, segundo eles, bandidos armados entraram na agência de distribuição de Ricardo de Albuquerque, renderam funcionários e levaram todos os produtos que quiseram.
Os carteiros contam ainda que, a pedido dos próprios clientes, foram disponibilizadas lixeiras para descarte das embalagens ainda no interior da agência. O objetivo dos moradores é ampliar a discrição para evitar assaltos no trajeto entre a agência e a parada de ônibus. PNEU CARECA Até chegar à região de Ricardo de Albuquerque, em mais de 40 km percorridos a partir de Botafogo, na zona sul, a reportagem cruzou com carros da PM nas vias ou estacionados pelas calçadas. Um deles, um Volkswagen Voyage parado próximo à comunidade Nova Holanda, chamava a atenção pelo seu precário estado de conservação.
Segundo os PMs responsáveis por ele, o veículo tem mais de cinco anos de uso e sua quilometragem total é desconhecida. O carro, dizem eles, até anda, mas por conta e risco do condutor, já que os pneus estão carecas e o para-choque dianteiro pode desabar a qualquer momento. A dupla de soldados disse ainda que aquela situação já foi até pior, quando os carros que nem sequer ligavam o motor serviam de base policial.
Em poucos minutos, esses dois policiais enumeraram uma série de problemas para a execução do trabalho. O primeiro era o cansaço de cinco dias trabalhados, em seis dias, com mais de 70 horas de plantão.
Eles disseram desconhecer os detalhes de como será a intervenção, já que nenhum oficial do comando fez qualquer explanação. Ao se despedir, um dos soldados fez uma recomendação à reportagem: "Valeu, meu irmão. Tome cuidado com o Rio, hein?"
OUTRO LADO
Os
Correios disseram que têm feito esforços para tentar reduzir os ataques à
empresa e aos seus funcionários, mas afirmam que a situação do Rio configura
uma situação endêmica de falta de segurança.
O ambiente de violência, ainda segundo nota, afeta toda a cadeia produtiva do
Estado e causa impacto ao cliente final, já que diferentes empresas não
conseguem entregar produtos.
Com os Correios não é diferente. Para manter suas atividades, a empresa tem
realizado investimentos significativos em segurança no RJ. Contudo, a
competência para o enfrentamento dessa problemática é compartilhada com o
Estado. Segundo a estatal, cerca de R$ 20 milhões foram investidos em escolta
armada, rastreadores e gerenciamento de risco, e reuniões foram realizadas com
representantes das diferentes polícias.
A empresa informou que as áreas com restrições de entrega são definidas com
base em levantamentos realizados pela segurança dos Correios, com mapa de risco
fornecido por órgãos de segurança.
A condição temporária de entrega de encomendas tem o objetivo de garantir a
segurança dos trabalhadores e dos clientes, e a integridade das encomendas
postais.
Procurada desde sábado (17), a Secretaria de Segurança do Rio não se
manifestou. (RG)
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